vale relembrar
A VOLTA DE JESUS
Frei Betto
Sem chamar a
atenção, Jesus voltou à Terra em dezembro de 2011. Veio na pessoa de um catador
de material reciclável, morador de rua. Comia prato feito preparado por
vendedores ambulantes ou sobras que, pelas portas do fundo, os restaurantes lhe
ofereciam.
Andava sempre com uma pomba pousada no ombro direito. Na porta de um teatro,
estranhou o modo como as pessoas bem vestidas o encaravam. Lembrou que, na
Palestina do século 1, sua presença suscitava curiosidade em alguns e aversão
em outros, como fariseus e saduceus.
Agora predominava a
indiferença. Sentia-se, na cidade grande, um Ninguém. Um ser invisível.
Ao revirar latas de
lixo à porta de uma faculdade, nenhum estudante ou professor o fitou. “Fosse eu
um rato a remexer no lixo, as pessoas demonstrariam asco,” pensou. Agora, nada.
Nem o percebiam. Ou consideravam absolutamente normal um homem andrajoso
remexer o lixo.
Graças a seu olhar
sobrenatural, capaz de apreender alma e mente das pessoas, Jesus sabia que
eram, quase todas, cristãs...
Roubaram um carro defronte da faculdade. A vítima, uma estudante cirurgicamente
embelezada, apontou-o como suspeito de cúmplice dos ladrões. A polícia, sem
pistas dos criminosos, decidiu prendê-lo para aplacar a ira da moça, filha de
um empresário.
O delegado inquiriu-o:
- Nome?
-
Jesus.
- Jesus de quê?
- Do Pai e do
Espírito Santo.
O delegado ditou ao
escrivão:
- Jesus da Paz,
natural do Espírito Santo.
A polícia conhece a diferença entre bandidos e moradores de rua. Tão logo a
moça e seus pais deixaram a delegacia, Jesus foi liberado.
Saiu pela avenida, de olho nas vitrines das lojas. Todas repletas de enfeites
de Natal. Tentou avistar um presépio, os reis magos, uma imagem do Menino
Jesus... Viu apenas um velho de barba branca, gordo, com a cabeça coberta por
um gorro tão vermelho quanto a roupa que vestia. O menino nascido em Belém havia
sido substituído por Papai-Noel. A festa religiosa cedera lugar ao consumismo
compulsivo e à entrega compulsória de presentes.
Impressionou-se com os rápidos flashes coloridos dos televisores expostos nas
lojas. A profusão de anúncios. Comentou com o Espírito Santo:
- Houvesse TV naquela época, teriam
transmitido o Sermão da Montanha como um discurso subversivo e exibido no Fantástico a multiplicação dos pães. Se
eu facilitasse, uma marca qualquer de cerveja iria querer me patrocinar...
Em busca de
material reciclável, Jesus se surpreendeu com a quantidade e a variedade de
lixo. Quanta coisa ele não conhecia! Como as pessoas consomem supérfluos!
Quanta devastação da natureza!
Dormiu num banco de
praça. Ao acordar, deu-se conta de que desaparecera seu saco repleto de
latinhas e papéis. Possivelmente outro catador o levara. Pobre roubando pobre.
Resignado, passou o dia revirando lixo para ganhar uns trocados e poder
garantir a janta.
Tarde
da noite, viu defronte de uma igreja. Decidiu entrar. Os fiéis, ao vê-lo tão
maltrapilho, torceram o nariz. Jesus preferiu ficar de pé no fundo do templo. A
Missa do Galo se iniciava. Achou o padre com cara triste, como se celebrasse um
ritual mecânico. O sermão soou-lhe moralista. Não sentiu que houvesse, ali, a
alegria da comemoração do nascimento de Deus feito homem. Os fiéis se mostravam
apressados, ansiosos por retornarem às suas casas e se fartarem com a ceia
natalina.
Terminada
a missa, Jesus perambulou pela cidade. Pelas calçadas, sacos de lixo estufados
de embalagens para presentes, caixas de papelão, ossos de frango e peru, cascas
de ovos... Observou os moradores de um prédio reunidos no salão do andar
térreo. Comiam vorazmente, estouravam garrafas de espumantes, trocavam
presentes, abraços e beijos. Nada ali, nenhum símbolo, que lembrasse o
significado originário daquela festa.
Passou diante de
uma padaria que fechava as portas. O padeiro, ao ver o catador, pediu que
esperasse. Retornou lá de dentro com uma sacola de pães, fatias da salame e um
refrigerante.
- É pra você comemorar o Natal – disse o homem.
Jesus chegou a uma praça semiescura. Havia ali uma
mulher excessivamente maquiada. Buscou um banco e ali se instalou para poder
comer. A mulher se aproximou:
-
Ei,
cara, tem o que aí?
- Pão, salame e
refrigerante.
-Não comi nada hoje.
E a noite tá fraca. Faz duas horas que estou aqui e nada de freguês. Acho que
em noite de Natal os caras ficam com culpa de pegar mulher na rua.
Jesus
preparou o sanduíche e estendeu-o à mulher.
- Se não importa de beber no mesmo gargalo...
-
Tenho lá nojo de alguma coisa? – murmurou a mulher. - Se tivesse, não
estaria rodando a bolsinha na rua.
-
Você não tem família?
-
Tenho, lá na roça. Larguei aquela miséria pra tentar uma vida melhor aqui na
cidade. Como não fui pra escola, o jeito é alugar meu corpo.
-
Esta noite de Natal não significa nada pra você?
-
Cara, você não imagina o que já chorei hoje lá na pensão. A gente era pobre,
mas toda noite de Natal minha mãe matava um frango e, antes de comer, a família
rezava um terço e cantava Noite feliz.
Aquilo me deixava muito feliz. Não posso relembrar que as lágrimas logo inundam
os olhos – disse ela, puxando o lenço de dentro da bolsa.
A
mulher fez uma pausa para enxugar as lágrimas e indagou:
-
Acha que, se Jesus voltasse hoje, esse mundo iria melhorar?
-
Não sei... O que você acha?
-
Acho que ninguém ia dar importância a ele. Essa gente só quer saber de festa, e
não de fé. Mas bem que ele podia voltar. Quem sabe esse mundo arrevesado tomava
jeito.
- Eu
não gostaria que ele voltasse. Não adiantaria nada. Há dois mil anos ele veio e
deixou seus ensinamentos. Uns seguem, outros não. Se o mundo está desse jeito,
a ponto de eu ter que catar lixo e você alugar o corpo, a culpa é nossa, que
não damos importância ao que ele ensinou. Veja, hoje é noite de Natal. Jesus
renasce para quem?
-
No meu coração, ele renasce todos os dias. Gosto muito de orar, não faço mal a
ninguém, ajudo a quem posso. Mas, sabe de uma coisa? Eu gostaria de poder falar
com Jesus, assim como nós dois estamos conversando aqui.
- E o
que diria a ele?
-
Bem, eu perguntaria se ser prostituta é pecado. Já vi um padre dizer que sim, e
ouvi outro falar que não. O que você acha?
- Acho
que Deus é mais mãe do que pai. E lembro que Jesus disse um dia aos fariseus
que as prostitutas iriam entrar no céu primeiro que eles.
Frei
Betto é escritor, autor do romance “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre
outros livros.